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A moça que quer ganhar o mundo
05/07/2020 18:01 em Novidades

A modelo Talita Santos é miss negra de Rondonópolis e quer ajudar outras mulheres negras a empreender e se defender da violência

 

Por João Negrão, da Editoria

O nome dela é Talita Santos de Jesus. Mas já foi Talita Colluty, nome profissional pelo qual desfilou em passarelas do Brasil e da Europa e emprestou seu rosto para inúmeras campanhas publicitárias. Agora ela é simplesmente Talita Santos, nome que adotou definitivamente, num encontro com suas raízes brasileiras, mato-grossense e rosariense, mas especialmente rondonopolitana.

Aos 27 anos, Talita Santos sabe de seu lugar no mundo e o quer conquistar. Quer ser estrela do universo da moda, mas também quer ser uma mulher que pretende ajudar outras mulheres que viveram e vivem histórias como a sua. Após superar a pobreza, a fome, vários tipos de violência, relacionamento abusivo e a carga cruel do preconceito e da discriminação, ela sabe que para conquistar o mundo é necessário ajudar a transformá-lo.

Entrevistar Talita é mergulhar na inquietude de uma mulher que sonha muitos sonhos e quer alcançar muito na vida. Há dentro dela – e isto é flagrante – uma força emuladora de quem almeja muito de tudo e embutida uma simplicidade quase simplória, contudo de uma sofisticação exemplar de sentimentos nobres. Talita é uma altruísta antes de tudo. Na completude do que anseia está sempre o bem comum, seja para os seus mais próximos – família, amigos e colegas – e para os necessitados, especialmente as necessitadas.

Sua trajetória de vida a compele a ser uma mulher sensível às dores humanas, contra as injustiças e por bem-estar para quem a orbita. Ela sabe que para isto tem que avançar, se munir não apenas de esperanças e vontades. Sabe que para esse avanço se materializar precisa de conquistas de mais e melhores trabalhos, de mais organização institucional. Aqui um de seus desejos é criar uma instituição para ajudar jovens negras e negros a encontrar lugar ao sol e a mulheres vítimas de violência a se defenderem física e judicialmente. Nesta última parte, seu plano é permitir a elas inclusive acesso  à defesa pessoal.

Semáforo, shopping e prédio

Em meio ao sonho de ajudar outras pessoas, Talita tem uma preocupação central: nunca deixar que falte aos pais e irmãos o essencial para a vida. A fome é um dos fantasmas que a rondou desde criança. Já ao nascer em uma fazenda em Rosário Oeste, onde os pais trabalhavam, sentiu a carência de tudo. Para fugir da fome – aquela fome mais renhida, a que acomete em meio à fartura -, a família foi morar em Campo Novo dos Parecis, cidade no Médio-Norte de Mato Grosso. Talita tinha seis anos de idade. Lá viveu o resto da infância, a adolescência e parte da juventude. Se a mudança evitou a família viver a fome e a miséria, na nova cidade a situação tinha outros horrores para uma família negra. Presenciou em sua alma e coração – numa cidade comandada por latifundiários racistas e impregnados pelo DNA escravagista – outras violências repugnantes.

Na escola ela sentia remorso de poder comer e sua família não. Até que um dia teve a ideia de levar um pote de margarina vazio pra poder pegar a merenda para matar a fome de minha família

“Em Campo Novo do Parecis eu cresci metade da minha vida. Eu mudei com minha família, com a minha mãe, meu padrasto e meus irmãos. Meu padrasto cuidava da fazenda e minha mãe era dona de casa”, recorda. “Sofri preconceito, bullying, às vezes falta de trabalho. Sofria muito preconceito por causa da minha cor, ainda hoje tenho marcas no meu braço, jogavam pedra em mim”, acrescenta.

Quando entrou na escola pública se deliciava com a merenda escolar, que invariavelmente poderia ser a primeira e única refeição do dia. Sentia remorso de poder comer e sua família não. Até que um dia teve a ideia de levar um pote de margarina vazio pra poder pegar a merenda para matar a fome de minha família. “Minha alegria ver minha mãe comendo aquela merenda era uma coisa indescritível”, rememora ela. E assim foi todos os dias de aula. Muitas vezes ela deixava de comer para levar tudo que recebia na escolas para sua mãe e irmãos.

Talita e os irmãos Isaías, Rafael e Emanuel, além da fome,  sofreram toda a sorte de preconceito e discriminação numa cidade de maioria branca, sempre na prática cruel do racismo. Foi por isto que resolveu deixar a cidade e seguiu para Rondonópolis, no Sul do Estado. Na principal cidade do interior em população e desenvolvimento, ela tentou fugir da fase muito difícil que passava em Campo Novo do Parecis. “Eu falei comigo: ‘Cara, eu preciso vencer’. Meu sonho, desde garotinha, era morar numa cidade grande que tivesse semáforo, shopping e prédio. Acho muito chique isso. Quando eu vi a cidade de Rondonópolis passando na televisão: ‘Quem bebe dessa água não vai embora jamais’ ou alguma coisa assim, eu falei: ‘Mãe, olha os prédios! É pra lá que eu vou!’ Isso foi há cinco anos. Eu pesquisei e vi que lá tinha Senai. ‘Ai meu Deus! Ganhei na loteria!”. Eu falei: ‘Cara, eu vou salvar minha família!’. Minha família em si não tem estudos, não tem carteira de habilitação, ninguém tem faculdade. ‘Vou ser a primeira a mudar o nome dessa família’, pensei. E eu vim pra cá. Recebi uma proposta de trabalho e vim com a cara e a coragem”, relata ela.

Eu quero mostrar aos jovens que eles nunca desistam de seus sonhos. Tem que lutar, ser persistente. Correr atrás do que quer. Quero ser uma referência para toda a sociedade negra do nosso país e no mundo inteiro

Dois meses em Rondonópolis e Talita descobre outra realidade cruel: a empresa que a havia contratado mandou quase todos os funcionários embora e ela estava na lista. “Eu trabalhava na Vivo e fui transferida pra cá como supervisora. Cheguei empolgada. Dois meses que eu estava aqui, em outubro, descobri que em dezembro, a empresa mandaria todo mundo embora. Eu cheia de sonho, nesse lugar, nesse paraíso, descobri que ia ficar desempregada. Foi tipo um baque pra mim, porque eu tinha vários sonhos, de comprar um carro, de ter uma vida melhor. Eu falei que ia vencer todas as barreiras e que ia dar a volta por cima e eu fui lutando. Falei com a minha mãe que pra trás eu não volto, que preferia ficar. E aqui, foi uma oportunidade pra mim”, descreve.

Miss Beleza Negra

Até que ela conheceu o pessoal da União das Negras e Negros pela Igualdade, a Unegro, uma das entidades do movimento negro nacional, que tem filial em Rondonópolis. A entidade estava organizando o concurso Miss Negra Rondonópolis e Talita se inscreveu. “Uma amiga me disse: ‘Você é muito bonita. Participa’. E isto me abriu muitas portas e começaram a aparecer trabalhos de modelo. Eu sempre sonhei, desde pequena, ser miss. Toda menina pensa, né? Mas, na minha cidade eu não podia ser porque eu não me encaixava no padrão da sociedade da minha cidade. Eu vi nisso uma oportunidade. Quando eu conheci a Unegro, ela me abraçou. Eu vi gente negra igual a mim. Vi gente com cabelo cacheado que até então eu não via. Eu comecei a me aceitar e tudo foi mudando”, recorda.

“E isso foi mudando minha vida. Eu tentei uma vez e não passei, na segunda vez também não ganhei e na terceira vez eu ganhei o Miss Beleza Negra. Pronto. As portas se abriram para mim e todos os meus sonhos começaram a se tornar realidade. Eu venci o Miss Beleza Negra em 2018 e depois disso minha vida só melhorou. Eu conheci também a Hellen Ganzaroli, viajei para vários lugares a trabalho”, recorda. E prossegue: “Eu quero mostrar aos jovens que eles nunca desistam de seus sonhos. Tem que lutar, ser persistente. Correr atrás do que quer. Quero ser uma referência para toda a sociedade negra do nosso país e no mundo inteiro, se eu puder, e claro que vou, conseguir. Eu sempre falo isso nas minhas palestras”, complementa.

onfira alguns dos trabalhos da Talita:

                          

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